Desafios na Amazônia

No ano em que o estado do Amazonas registrou o maior número de queimadas de sua história, os desafios na região amazônica foram se acumulando com o aumento do desmatamento, a pandemia de Covid-19 e a contínua violação de direitos das populações indígenas. Como investigar e reportar esses e outros problemas da Amazônia? A que dados jornalistas, ativistas e sociedade civil podem recorrer para ter uma visão da realidade? Como realizar essa produção próximo aos habitantes da região? Essas foram as questões abordadas no último painel realizado durante a V Conferência Brasileira de Jornalismo de Dados e Métodos Digitais (Coda.Br), no dia 6 de novembro, às 19h.

O painel foi composto por Kátia Brasil, co-fundadora e editora executiva da agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real; Nelly Luna, co-fundadora e editora geral do Ojo Público, baseado em Lima e atualmente uma das mídias digitais de investigação com maior audiência no Peru; e Toya Manchineri, membro da Coordenação das Organizações Indígena da Amazônia Brasileira (COIAB) e coordenador de Territórios e Recursos Naturais da Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (COICA). A conversa foi mediada por Thiago Medaglia, jornalista bolsista do Programa Knight de Jornalismo Científico do MIT.

Assista o painel com tradução simultânea do espanhol para o português

Cobertura sobre a Amazônia não pode ser sazonal

Representando a agência Amazônia Real, Kátia Brasil falou sobre as diferenças entre a cobertura do veículo e da grande mídia. Ela apresentou reportagens feitas com dados recentes sobre as queimadas e a violência doméstica durante a pandemia. 

Kátia contou que, por conta do trabalho do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o acesso a dados de desmatamento é um desafio menor. Inclusive, foi a partir de dados do INPE que a agência realizou, em parceria com a Amazon Watch, um sobrevoo que flagrou o avanço da degradação ambiental no território Mundukuru, em outubro deste ano.

Por outro lado, para a série “Um vírus e duas guerras”, que traz reportagens sobre a violência doméstica durante a pandemia, a coleta de dados foi um pouco mais difícil. As informações foram obtidas por meio de secretarias estaduais de segurança pública e por vezes a Amazônia Real teve que recorrer a Lei de Acesso à Informação (LAI) para tornar esses dados públicos. “Esse é o grande desafio de trabalhar dados na região amazônica, principalmente nas cidades: levantar essas informações através do serviço público”, disse Kátia.

Ela alertou para o preparo que jornalistas devem ter ao trabalhar na Amazônia, especialmente os de fora da região: “O jornalista tem que vir para a Amazônia sabendo que vai encontrar uma série de desafios. Mas a coisa mais importante é pedir licença antes de entrar numa terra indígena”.

Tratando ainda da cobertura sobre a região amazônica realizada pela grande mídia, Katia criticou que esse trabalho seja feito de forma “sazonal”, se interessando apenas pelos “grandes eventos” como aumento do desmatamento, queimadas ou morte de uma grande liderança indígena. A jornalista afirmou que a Amazônia Real surgiu justamente para confrontar esse tipo de cobertura.

Jornalismo multicultural

A narrativa multicultural é um dos pilares da atuação do Ojo Público. Em sua fala, a jornalista Nelly Luna contou um pouco mais sobre as dinâmicas do veículo e trouxe exemplos de trabalhos realizados com dados e, inclusive, com a participação de profissionais indígenas.

O Ojo Público possui uma rede investigativa transfronteiriça e outra regional com repórteres indígenas (em torno de 10 correspondentes locais). Essa rede regional, bem como a aliança com mídias comunitárias, tem possibilitado ao veículo a construção de uma ampla rede de fontes indígenas, e de uma visão transversal e intercultural. Nelly reforçou que a busca é por lutar contra estereótipos, contar histórias sem paternalismos e não apenas abrir espaço às demandas das populações indígenas, mas incorporá-las como colunistas, artistas, jornalistas, fotógrafos e especialistas, por exemplo.

Um caso desta abordagem é o de uma reportagem de dados sobre o assassinato de pessoas indígenas na Amazônia desde 2013. A matéria contou com a ilustração de um artista indígena e explorou uma narrativa mais empática e envolvente.

Ainda sobre investigações em bases de dados, a jornalista citou uma reportagem sobre como a exportação do azeite de dendê (óleo de palma) não garante o aproveitamento integral dos insumos sem desmatamento. Para temas relacionados, Nelly deu a dica de investigar bases de dados sobre exportação ou das alfândegas dos países – onde jornalistas podem ter uma ideia sobre o comércio global e atores formais envolvendo determinado tipo de atividade.

Atual política do governo federal é o principal desafio 

Para além de problemas já conhecidos de longa data na região amazônica, como os projetos relacionados a pecuária extensiva, a retomada dos territórios indígenas e a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, Toya Manchineri apontou que a principal preocupação no momento é a política do governo federal vigente.

O coordenador de Territórios e Recursos Naturais da COICA explicou como o Estado brasileiro age contra os direitos constitucionais dos povos indígenas: com omissão na fiscalização por conta da pandemia e desmonte das instituições de controle e fiscalização na área ambiental. Segundo ele, a Funai não tem recursos para funcionar, as políticas públicas para populações indígenas estão enfraquecidas e o próprio Presidente Jair Bolsonaro incentiva a invasão de territórios indígenas.

“O projeto político atual não respeita os direitos dos povos indígenas, dos quilombolas, dos brasileiros de uma forma geral. Esse é um dos projetos de política do atual governo que vai impactar todo o território nacional, não só a Amazônia”, disse.

Toya defendeu ainda participação das populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas e também as da cidade na decisões sobre desenvolvimento da Amazônia. “Aí existem vários conhecimentos que podem contribuir com uma política de desenvolvimento para a Amazônia que seja inclusiva, que seja transformadora”.

Cooperação para coleta de dados

Seja no Brasil ou no Peru, o registro de casos e óbitos pelo novo coronavírus ainda não é feito de forma que contemple satisfatoriamente a realidade das populações indígenas. No Brasil, Kátia e Toya explicaram que esse tipo de informação não está disponível atualizada em formato aberto para que seja feito um acompanhamento constante. A COIAB teve de formar parcerias com instituições de pesquisa científica e contar com o trabalho de ONGs de médicos, líderes e profissionais de saúde indígenas para fazer esses registros manualmente, corpo a corpo.

No Peru, o desenvolvimento da situação não foi melhor. Nelly contou que pelo menos nos primeiros três, quatro meses da pandemia, os casos e óbitos de pessoas indígenas por Covid-19 estavam sendo registrados sem levar em consideração suas etnias. Só depois desse período que o governo local passou a acrescentar essa variável nos relatórios epidemiológicos. 

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Katia Brasil

Cofundadora e editora executiva da Agência de Jornalismo Independente e Investigativo Amazônia Real. É formada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso, no Rio de Janeiro, em 1990. Iniciou a carreira nas rádios Tupi e Tropical (cobertura das escolas de samba). Em 1991 mudou-se para Amazônia. Em Roraima, trabalhou nos jornais O Estado, A Gazeta, TV Educativa e, como correspondente de O Globo (de 1991 a 1992). Em Manaus, trabalhou no jornal Amazonas Em Tempo e na TV Cultura. Foi correspondente de O Estado de S. Paulo (de 1994 a 1999). De 2000 a 2013, trabalhou na Folha de S. Paulo. Em 1991 ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com reportagem “Bandeira do Brasil Hasteada na Fronteira” pelo jornal A Gazeta de Roraima. Em 2019 foi nomeada pela jornalista Angela Pimenta à campanha Women Journo Heroes (#JournoHeroes) da International Women’s Media Foundation (IWMF) com apoio do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas.

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Nelly Luna

Co-fundadora e editora geral da OjoPúblico, veículo de comunicação dedicado à pesquisa e uma das principais referências da América Latina. Jornalista investigativa especializada em meio ambiente, poder e direitos humanos. Suas investigações receberam diversos prêmios nacionais e internacionais. Como membro do OjoPúblico, liderou investigações que ganharam duas vezes o prêmio global de jornalismo de dados (Data Journalism Awards 2015, 2020). Também recebeu o Prêmio de Excelência em Jornalismo da Associação Interamericana de Imprensa (SIP) e o Prêmio de Jornalismo Científico do Institute of the Americas. A equipe do OjoPúblico também ganhou o Prêmio Nacional de Direitos Humanos no Peru (2015), e a menção honrosa concedida pela Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA, 2019).
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Toya Manchineri

Membro da Coordenação das Organizações Indígena da Amazônia Brasileira (COIAB), coordenador de Territórios e Recursos Naturais da COICA, Diretor Executivo da Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (MATPHA).
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Thiago Medaglia

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