A interpretação dos dados da saúde tornou-se uma habilidade crítica no momento atual, quando o mundo luta contra uma pandemia sem precedente. Neste texto, resumiremos alguns aprendizados compartilhados no webinar “Como produzir, ler e interpretar dados da pandemia” e no workshop “DataSUS: Uso de dados na saúde pública” da última Conferência de Jornalismo de Dados e Métodos Digitais (Coda.Br).

O webinar está disponível na íntegra no YouTube e reuniu quatro especialistas convidados: Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Paula Spinola, doutoranda da University College London (UCL) e pesquisadora do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS); Fernanda Campagnucci, diretora executiva da Open Knowledge Brasil; e Marcelo Soares, jornalista de dados fundador da Lagom Data. A atividade foi realizada pelo Instituto SerrapilheiraAgência Bori e a Escola de Dados no dia 08 de abril de 2020.

Webinar sobre dados da COVID-19

O workshop foi realizado em novembro de 2019 por Raphael Saldanha, pesquisador da Fiocruz com especialização em métodos estatísticos e saúde. Confira aqui a apresentação em PDF.

DataSUS

Impulsionado pelo processo de redemocratização do Brasil e pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o DataSUS foi concebido em 1991 com o objetivo de produzir e disseminar dados relacionados a saúde, por meio de uma rede de sistemas. Tais sistemas disponibilizam dados sobre mortalidade, natalidade, hospitalização, atendimentos ambulatoriais e infraestrutura hospitalar. Eles podem ser acessados de duas maneiras.

Uma delas, com formato mais “palatável”, é por meio do TABNET, que contém informações agregadas. O outro modo possível dá acesso aos microdados pelo download dos arquivos com os microdados, em que é possível verificar a quantidade de pacientes hospitalizados. Mas a disponibilização demora pelo menos três meses e exige conhecimentos técnicos para a conversão dos arquivos.

Ao longo dos anos o DataSUS se atualizou: o sistema já lidou com dados em CD-ROM e no TabDOS durante a década de 90. Hoje, o TABNET permite a consulta às informações. Em seu workshop, Raphael Saldanha apresentou as diferentes bases do Ministério da Saúde, sintetizadas abaixo. Porém, segundo ele, alguns indicadores só são possíveis de serem obtidos através da Lei de Acesso à Informação.

Sistema Ano de origem Abrangência Objetivo Frequência de atualização
Sistema de Informação de Mortalidade – SIM 1996 SUS e particular Informar sobre óbitos Atualização anual, com 1 a 2 anos de defasagem
Sistema de Informações de Nascidos Vivos  -SINASC 1994 SUS e particular Informar sobre a mãe e o nascido vivo Atualização anual, com 1 a 2 anos de defasagem
Sistema de Informações de Internações Hospitalares – SIH 1984 SUS Informar sobre internações hospitalares Atualização mensal, com 1 a 2 meses de defasagem
Sistema de Informações de Ambulatoriais – SIA 1994 SUS Informar sobre atendimentos ambulatoriais, realizados ou não com internações Atualização mensal, com 1 a 2 meses de defasagem
Sistema de Informações de Doenças e Agravos de Notificação Obrigatória – SINAN 1998 SUS e particular Informar sobre casos de agravos de notificação Atualização anual variada
Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde – CNES 2000 SUS Informar sobre estabelecimentos, equipamentos e profissionais de saúde Atualização mensal, com 1 a 2 meses de defasagem

De maneira geral, para alimentar os sistemas, é respeitada uma hierarquia entre os órgãos: as coletas de dados são feitas pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS) espalhadas nas cidades, que obrigatoriamente encaminham a informação paras Secretarias de Saúde de seus respectivos municípios. Posteriormente, cada secretaria municipal alimenta a Secretaria Saúde Estadual, que, por sua vez, repassa os dados para o Ministério da Saúde. 

“Até em Londres, meus orientadores ficam impressionados com o nível de transparência que temos em relação aos dados”, comentou Paula Spinola durante o webinar. Segundo ela, apesar de serem “riquíssimos”, o problema é que estão desorganizados, pois a maior parte são de bases administrativas que informam os procedimentos realizados pelo SUS para fins de repasse de verba.

Paula Spinola realizou um levantamento dos equipamentos disponíveis no SUS para enfrentar a pandemia, utilizando dados do Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES).  A pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) investigou a capacidade do SUS para o enfrentamento da demanda extraordinária atual, causada pela COVID-19. O estudo mostra as desigualdades no número de leitos e respiradores mecânicos entre os municípios.

Até o momento, os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde sobre casos confirmados do novo coronavírus estão agregados por estado. As informações são disponibilizadas por meio de um painel e no formato CSV.

Dados das secretarias de saúde estaduais

Em relação aos dados das secretarias estaduais de saúde, a situação pode variar drasticamente, de acordo com o governo local. Durante o webinar, foi apresentado o levantamento sobre transparência dos dados sobre COVID-19 nos estados brasileiros, que classifica a qualidade do conteúdo, granularidade e formato dos dados disponibilizados pelos governos. O estudo identificou inicialmente a insuficiência de dados em 90% dos estados

A apresentação foi feita por Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil e parte da Escola de Dados. Ela alertou os governos sobre a importância de disponibilizar dados básicos sobre a infraestrutura do sistema de saúde e mostrou o Índice de Transparência da COVID-19, uma metodologia para avaliar objetivamente o que os estados têm divulgado sobre a pandemia.

Muitos governos locais fazem divulgação de informações diariamente sobre a quantidade de infectados e medidas adotadas para combater o avanço. Porém, publicam os dados em formato de texto, apresentações ou formatos dificultam a realização de análises e projeções. Na aba ‘Fontes consideradas‘ da planilha com os dados completos da pesquisa, você encontra diversas fontes de dados locais, como links para painéis, boletins epidemiológicos e outros informes de todos os estados brasileiros. 

A importância de um acompanhamento em nível local também foi ressaltada durante o webinar na fala de Marcelo Soares (Lagom Data), que faz o monitoramento da evolução dos casos de Coronavírus com informações das Secretarias de Saúde desde 09 de março. Ele ressaltou que o interior dos estados possuem desigualdades e particularidades, que influenciam no combate à pandemia. Para investigar o tema, ele cruzou dados para identificar entre os municípios com casos confirmados aqueles onde não há leitos de UTI disponíveis pelo SUS. 

No entanto, a distribuição dos testes não é um dado conhecido. Portanto, ressalta Soares, existe possibilidade dos casos não terem sido confirmados por não haver testes disponíveis nos hospitais. Em São Paulo, por exemplo, a maior parte dos casos confirmados são da rede privada de hospitais, o que indica a possibilidade de uma grande concentração de testes nessa rede. 

Pesquisa amostral para estimar infectados

Como os dados sobre testes realizados no Brasil são desconhecidos, o número de “casos confirmados” registrados pelo Ministério da Saúde acaba sendo pouco fiável. Para contornar este problema, foi criado o primeiro grupo de estudo do Brasil para estimar o número de infectados pelo COVID-19, no qual Pedro Hallal é coordenador-geral.

Segundo ele, no momento, não existe nenhuma estimativa razoável da quantidade de casos de coronavírus na população do território nacional e no mundoO que há é uma estimativa dos testados positivo, que representa uma fração mínima do total real de infectados. Essa estimativa tem grande distorção em relação à realidade, pois apenas as pessoas que apresentam sintomas estão sendo testadas, mas a grande maioria dos casos são assintomáticos. Assim, o estudo amostral é importante para compreender a real situação e planejar os investimentos necessários para o sistema de saúde.

A metodologia de pesquisa tem quatro fases de coleta de dados. Em cada uma delas serão realizados testes e entrevistas com 4.500 pessoas de todas as regiões do estado. Nas 9 cidades mais populosas entre as regiões do estado, serão entrevistadas e testadas 500 pessoas por fase, em intervalos de 2 semanas. Com base nesta amostra populacional, pode ser feita uma estimativa da população como um todo sobre qual o percentual de infectados, velocidade de alastramento de infecção, e qual o percentual de infecções assintomáticas e com sintomas leves.

O grupo de estudos  é uma iniciativa da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e outras universidades, junto ao Governo do Rio Grande do Sul e Governo Federal, com o apoio da sociedade civil por meio do financiamento oferecido por empresas e institutos. A coleta dos dados no Rio Grande do Sul será iniciada na primeira semana de abril.

O Ministério da Saúde também entrou em contato com o grupo de estudos, para pedir a ampliação da metodologia para nível nacional. A previsão de início em nível nacional é a segunda semana de abril. Os resultados serão divulgados em tempo real.

* Texto escrito com a colaboração de Edilaine dos Santos, Mariana Assis, Luan Rodrigues e Adriano Belisário.