Texto de Marília Gehrke*
Existem várias maneiras de estudar e compreender o uso de dados no jornalismo. Embora o jornalismo guiado por dados – ou simplesmente jornalismo de dados – seja um conjunto de práticas, o que pressupõe uma atividade essencialmente “mão na massa” (hands on), há muito de teoria em suas origens. Do modo como o conhecemos hoje, o jornalismo guiado por dados é uma prática moderna: a origem do termo remete à segunda metade dos anos 2000, a partir de um texto seminal de Adrian Holovaty, seguido da abertura de bancos de dados públicos por conta de políticas de transparência. Cabe lembrar, contudo, que o JGD tem em suas raízes as premissas do Jornalismo de Precisão e da Reportagem Assistida por Computador (RAC ou CAR, na sigla em inglês), desenvolvidos principalmente nos Estados Unidos a partir do final dos anos de 1960 e da década de 1980, respectivamente.
O emprego do computador no percurso de investigação jornalística, à época do Jornalismo de Precisão, não era regra. A RAC, por sua vez, demandava pequenas ações com o uso da informática – uma simples troca de e-mails ou pesquisa em sistemas poderia ser incluída dentro do escopo de sua prática. A grande contribuição dessas práticas iniciais ao jornalismo guiado por dados tem a ver com hipótese e método, o que confere um caráter científico e menos dependente de declarações de fontes pessoais. Ao criar o Jornalismo de Precisão, Meyer acreditava que o repórter deveria aplicar em seu dia a dia métodos das ciências sociais e análise estatística. Significa dizer, por exemplo, que um jornalista poderia ir às ruas fazer pesquisa de opinião ao invés de simplesmente trabalhar com os dados coletados por outras pessoas ou instituições.
Em diferentes escalas, muito do que se preconizava sobre as primeiras formas de jornalismo de viés quantitativo ainda é visível no jornalismo guiado por dados. A principal diferença parece ser a mudança no ambiente em que as reportagens são publicadas. Na Web, as narrativas baseadas em dados ganham diferentes formatos, sem limitação de caracteres, e permite contar histórias aprofundadas, e contextualizadas em camadas por meio de hipertexto. Assim, uma das principais premissas do jornalismo guiado por dados na atualidade tem sido a demonstração de uma prática transparente, com referência às fontes originais, explicação do método utilizado e disponibilização do código-fonte empregado nas análises.
Esta lista abrange apenas livros, mas existem muitos artigos qualificados sobre o tema. A maioria deles está em inglês, mas aos poucos a produção nacional ganha fôlego. Infelizmente, não consegui citar muitas autoras neste post. Conheço muitas mulheres que fazem um trabalho incrível em redações e organizações independentes, mas a quantidade de pesquisadoras na área ainda é restrita – eu mesma trabalho para mudar esse cenário. A lista aqui mencionada não é definitiva, mas serve de ponto de partida para quem deseja conhecer mais sobre o jornalismo guiado por dados.
1. Precision Journalism: a reporter’s Introduction to social science methods
(Philip Meyer)
Meyer defende, nesta obra fundamental, que o jornalismo utilize uma abordagem científica à prática da reportagem. Em outras palavras, os repórteres devem coletar seus próprios dados para efetuar análises estatísticas ao invés de simplesmente entrevistar fontes humanas – e fazer jornalismo declaratório – em uma investigação. As ideias de Meyer inspiraram a Reportagem Assistida por Computador (RAC ou CAR, na sigla em inglês), desenvolvida principalmente a partir dos anos de 1980, nos Estados Unidos, com a ampliação do uso da informática nas redações.
2. The Data Journalism Handbook 2: Towards a Critical Data Practice
(Jonathan Gray e Liliana Bounegru [org.])
Esta versão atualizada do manual básico de jornalismo guiado por dados, disponível na Web, oferece um sobrevoo do tema a partir de exemplos. Os textos mostram que o JGD pode servir de ferramenta não só para investigações complexas, mas tem potencial para ser aplicado no dia a dia de trabalho.
3. The Online Journalism Handbook: Skills to Survive and Thrive in the Digital Age
(Paul Bradshaw)
A segunda edição deste livro apresenta um capítulo específico sobre jornalismo guiado por dados, e tem contribuições bastante práticas: o texto traz informações sobre onde e como encontrar dados (há uma lista de possíveis fontes), além de interrogá-los para a execução das pautas. Bradshaw, que mantém um blog atualizado com diversas dicas, é um dos gurus do jornalismo de dados, então merece a leitura atenta de todas as suas produções.
4. Facts are sacred
(Simon Rogers)
O autor mostra que o uso de dados no jornalismo é antigo, com registros do século XIX. A diferença é que, na atualidade, um número jamais visto de bancos de dados está disponível abertamente no mundo todo. Há, assim, uma vasta quantidade de matéria-prima para o jornalismo. Ainda que programar seja importante e capaz de tornar mais efetivos os trabalhos que demandam automação, aprender essa competência não é pré-requisito – o jornalismo guiado por dados ainda é sobre contar histórias.
5. Apostles of certainty: Data Journalism and the Politics of Doubt
(C.W. Anderson)
Quando e como o jornalismo se tornou mais contextual e explicativo? O autor examina o papel desempenhado pelos fatos no jornalismo guiado por dados enquanto traz discussões sobre objetividade e incerteza. O livro traz vários insights, e aqui vai um spoiler: Anderson traz o conceito de “objetividade de segunda ordem” em relação ao jornalismo estruturado, o que poderia decretar o fim da incerteza no jornalismo a partir da exposição de evidências e origem da informação.
6. Interactive journalism: Hackers, Data, and Code
(Nikki Usher)
O modo como os jornalistas contam histórias está mudando, e a autora nos mostra como isso funcionou para o jornal The New York Times com a publicação da reportagem longform Snow Fall, vencedora no Prêmio Pulitzer. A interatividade pode ser encontrada em diversas formas no jornalismo, incluindo o JGD, que possui suas narrativas baseadas em dados. Nessas circunstâncias, os profissionais também podem se expressar por meio de códigos de programação – o livro apresenta um capítulo sobre jornalistas hacker.
7. Automating the news: How Algorithms Are Rewriting the Media
(Nicholas Diakopoulos)
As notícias são cada vez mais moldadas pelos algoritmos, ou mesmo criadas a partir dessas instruções computacionais. As mudanças ocorrem em toda a cadeia jornalística: produção, disseminação e recepção de conteúdo. Como os algoritmos e a automação mudam o cenário das notícias? O autor mostra de que maneira a computação está transformando a geração de conhecimento e produção de informação no jornalismo.
8. The social fact: News and Knowledge in a Networked World
(John Wihbey)
O livro faz pensar sobre como o jornalismo guiado por dados e a produção de conhecimento estão interconectados. Fatos sociais emergem todos os dias em pequenos grupos, e geram influência sobre todo o ecossistema de notícias na era da desinformação. Em um espaço em rede, como saber o que ainda é verdadeiro? O autor apresenta essas reflexões e traz números sobre como os profissionais enxergam suas próprias habilidades analíticas no trabalho com os dados.
9. Data Journalism: past, present and future
(John Mair et al.)
O livro apresenta cinco sessões e diversos artigos. Minha sugestão, para esta lista, é sobre um texto que fala sobre jornalismo guiado por dados e educação. Escrito por Bahareh Heravi, o trabalho, intitulado Ensinando jornalismo de dados, lista as diferenças que se deve ter em mente ao ensinar jornalismo de dados para jornalistas já graduados e aqueles que ainda estão em formação, sugerindo que esta formação específica ocorra em todos os programas em nível mundial.
10. How chart lies: Getting Smarter about Visual Information
(Alberto Cairo)
Já ouviu falar sobre “Visual Trumpery”? O nome é autoexplicativo: o primeiro exemplo trazido no livro de Cairo trata de um mapa eleitoral apresentado por Donald Trump fora de contexto e com potencial para gerar desinformação. Há algumas razões – e o autor explora isso ao longo da obra – que podem gerar equívocos ao interpretar visualizações, incluindo dados insuficientes, duvidosos ou gráficos mal feitos. Se você tem interesse em aprender mais sobre visualização de dados, este é o seu guia intelectual.
—
Os livros aqui relacionados mostram que o jornalismo guiado por dados tem potencial para ser observado não apenas do ponto de vista prático – o que é essencial, mas não deve ser restrito -, pois apresenta uma série de premissas que o aproximam da ciência e da área investigativa do jornalismo. Além disso, parece fundamental conhecer suas origens para compreender como esta prática profissional se transformou no que é hoje e ganhou importância no campo jornalístico.
* Marília Gehrke é jornalista e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Pesquisa jornalismo guiado por dados, fontes, transparência e desinformação. Em 2018, defendeu a dissertação intitulada “O uso de fontes documentais no jornalismo guiado por dados” e recentemente escreveu sobre como começar a pesquisar este tema. Este post foi inspirado em uma thread publicada no Twitter.