Em uma roda de conversa no município de Soure, na ilha de Marajó (PA), um grupo de dezenas de mulheres senta-se na areia fofa da praia da comunidade do Pesqueiro, ao entorno de uma fogueira. Ali, elas acompanham atenciosamente a lenda da Mãe do Fogo, a história de uma mulher que usava o fogo para assombrar os invasores e, assim, proteger a floresta. Todas as mulheres ali presentes já conhecem a lenda porque ela faz parte da cultura local. A novidade é que, desta vez, todas as moradoras das diferentes cidades do Marajó souberam que entre os anos de 2018 e 2020, apenas três municípios tiveram diminuição no número de queimadas no Marajó. Por outro lado, dos 12 que tiveram aumento, três municípios mais do que dobraram o número de focos de queimadas e outros três tiveram um aumento maior do que 80% no mesmo período. A mãe do Fogo precisava de ajuda e contava com essas mulheres para defender o território: as “Filhas da Mãe do Fogo”.
“Para nós, sempre foi muito necessário criar, em primeiro lugar, uma conexão genuína com quem mora no território. Quando facilito oficinas na comunidade e levo gráficos, tabelas ou mapas, sinto que as lideranças ficam perdidas, parece que aquela discussão fica distante. Mas quando trago elementos do cotidiano, as lendas, exemplos do ambiente, eles participam, deixam de ser ouvintes passivos e trazem outras informações, outros dados complementares. É importante que eles se vejam nos dados”, explicou Mariane Castro, gestora da comunicação do Observatório do Marajó.
É assim, através da oralidade, uma das diferentes tecnologias sociais dos povos da floresta que são repassadas de geração em geração, que o Observatório do Marajó vem trabalhando dados para produzir informação para denunciar violações de direitos humanos na região. O projeto idealizado pela organização nasceu em 2021 e desde então já envolveu mais de 50 comunidades tradicionais, distribuindo recursos financeiros e treinamentos para combate às queimadas, mas, sobretudo, fazendo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Mapbiomas, circularem pelo território, que passou a produzir também seus próprios dados.
Bingo
Outra forma de trazer dados locais sobre queimadas de forma mais contextualizada é o “Bingo das queimadas no Marajó”. Nessa dinâmica, as mulheres são convidadas a pensar quais municípios registraram menos queimadas em determinado período (e quantas ocorrências foram) e quais municípios registraram aumento. Depois o grupo é estimulado a olhar o painel e pensar quais aspectos cada município tem que podem ter contribuído com o aumento ou redução das queimadas. Depois, a pessoa mediadora vai perguntando quem apostou em cada município e todo mundo que respondeu igual, grita “bingo”. Depois de ouvir todas as respostas dos participantes, a pessoa mediadora traz os dados do Inpe. Além de trabalhar a apropriação das moradoras em relação à realidade de seus territórios, a dinâmica também traz a reflexão se essas percepções estão alinhadas aos dados.
As práticas foram compartilhadas no livreto “Filhas da Mãe do Fogo”, que teve sua terceira edição lançada no começo deste ano.
Mapa no tecido
Em 2023, cerca de 85 lideranças comunitárias do Marajó pendrives com o curso completo “Jornalismo de Dados Ambientais: no rastro do desmatamento da Amazônia”, da Escola de Dados. Ao acessarem diferentes bases de dados ambientais e à ferramenta de código aberto para análise dados georreferenciados QGIS, elas elaboraram um mapa com o aumento do nível do mar sobre o arquipélago, que pode causar inundações nos próximos anos. O grupo de lideranças também elaborou o “Mapa do Fogo”, que identifica pontos vulneráveis a incêndios, desmatamento e conflitos no território Marajoara. O mapa é feito em tecido e circulou pelos municípios do Marajó, durante atividades e encontros entre lideranças locais. Em cada parada, os moradores locais iam preenchendo dados de seus próprios municípios.
“O trabalho que a Escola de Dados tem feito é fundamental nesse processo porque aproxima as lideranças comunitárias de ferramentas de analíse e uso dos dados. Faz com que essas comunidades não sejam só objetos de pesquisa e sim agentes pesquisadores. Elas passam a identificar no próprio cotidiano e dentro de suas próprias vivências, o que os dados mostram e o que falta mostrar e isso e isso é muito poderoso”, concluiu Mariane.