Dados e saberes territoriais: onde estamos, para onde (não) vamos

SOBRE O PAINEL

Texto por Isis Reis

 

O painel “Dados e saberes territoriais: onde estamos, para onde (não) vamos” abriu as atividades do Coda no município de Salvaterra, na Ilha de Marajó. Na Universidade do Estado do Pará, lideranças locais se reuniram para uma troca de conhecimentos e experiências sobre suas comunidades. 

A coordenadora da Escola de Dados, Jamile Santana, apresentou os painelistas Cristivan Alves (ARQIA), Bianca Barbosa (Observatório do Marajó e Grupo de Juventude Abayomi), Matheus Adams (Coletivo Cuíra) e José Luís (Deco) Souza (Juventude Abayomi).

Bianca, gestora de projetos do Observatório do Marajó, abriu a mesa contando como a organização começou a atuar em 2020, construindo uma rede de lideranças locais nos 17 municípios do arquipélago. 

 

 

A atuação do Observatório está ligada à realização de campanhas de mobilização e incidência, análise de dados e de políticas públicas e formação de redes e compartilhamento. 

Cristivan Alves, por sua vez, é originário do Quilombo Igarapé do Arirá, de Oeiras do Pará. Formado em Jornalismo pela Universidade Federal do Pará, ele conta que acessou a universidade por meio do processo seletivo especial para quilombolas. 

Na sala, foram expostas fotografias de autoria de Cristivan, que retratavam sua comunidade. 

 

 

Fotos: Cristivan Alves

 

“A gente fala de dados, mas passamos por uma situação bastante complicada porque o governo não tinha dados de quilombolas. Queríamos vacinar os quilombolas [contra a Covid-19] e o governo procurou a Malungu, a ONG que eu também trabalho”, refletiu. Ele conta que, para a vacinação, a Malungu acionou as lideranças de todas as comunidades pelo WhatsApp para coletar localizações e oferecer esses dados ao Governo do Estado do Pará. 

“O próprio IBGE lançou dados incompletos de comunidades”, afirma. Cristivan revela que, na Malunga, há um levantamento de comunidades que não entraram no mais recente censo do instituto. E completa: “eu mesmo não fui recenseado”.

 

 

O jornalista atua também na ARQIA, organização fundada em 2011 para conscientização para autodeclaração como quilombola. “Arirá sempre existiu no município. Se você questiona onde é uma rua africana, todo mundo conhece porque é nessa rua que moram as famílias negras […]. Através da organização dessa autodeclaração quilombola, a gente faz um resgate histórico da narrativa da comunidade”, pondera. 

Em suas fotos, ele mostra quilombos do município de Oeiras e, em seus slides, um croqui da comunidade, abordando também a questão da titulação das comunidades quilombolas. 

Ele contou que, atualmente, a ARQIA tem uma sede a duas horas do centro do município, com uma escola onde as crianças estudam. A produção artesanal da farinha de mandioca, apenas para consumo próprio, e o festejo de São João também marcam as atividades do quilombo.

 

 

Fotos: Cristivan Alves

 

A seguir, Matheus Adams trouxe um pouco de sua origem. O jovem é da comunidade tradicional Vila do Pesqueiro, de Soure. Segundo ele, o maretório do Marajó contém a primeira reserva extrativista do país: a reserva marinha de Soure. É por meio do extrativismo que a população garante sua renda. 

O Coletivo Cuíra, o qual integra, é de jovens que atuam no território. A erosão costeira é um dos focos de preocupação e mobilização do coletivo. Em 2010, Matheus conta, a erosão atingiu mais de 30 casas, causando a realocação de diversas famílias. Sem ajuda de qualquer órgão público, a comunidade local desenvolveu um método ecológico e efetivo para evitar novas erosões: passou a utilizar coco e folha de palmeiras nas áreas degradadas e, desde então, nenhuma família precisou ser desalojada.

 

 

Outro foco do trabalho do grupo é promover a arborização dentro das comunidades extrativistas, mas outro problema enfrentado no território são os resíduos sólidos. “Há queimas controladas por falta de coleta seletiva local. Há pontos de entregas voluntários de materiais recicláveis nas comunidades e há uma cooperativa de catadores e catadoras para reciclar o material. A biomassa é trazida pela maré e proporciona a recuperação das áreas que antes sofriam pelas marés”, conta.

Quanto ao monitoramento e geração de dados, Matheus comenta que usa dados do ICMBio, mas que dados também são gerados pela Assurema e pela Rare Brasil. Ele mesmo  afirma já ficou encarregado de planilhar dados de pescadores e de catadores de caranguejos e camarões, que precisam ser mapeados para receber financiamento do Pronaf.

Em relação à atuação da Rare Brasil, ele indica que a rede forma jovens para a participação local. As organizações, por vezes, atuam de maneira interligada, pois a sede do Coletivo Cuíra é uma parceria com a Assurema. E traz um resgate da campanha Julho Verde, de conscientização sobre a importância dos mangues, artivismo e monitoramento do extrativismo e do pescado da reserva marinha de Soure. O jovem também mostrou como é a participação social na gestão socioambiental. “Em seu primeiro ano, os cuíras levaram um plano de manejo das comunidades. Os planos são elaborados a partir da realização de um Encontrão Cuíra, uma ação pré-COP 30, parte do edital IARA 2023. O edital prevê intervenções e imersões com mulheres e jovens das comunidades extrativistas para reaproveitamento criativo dos resíduos sólidos”, completou.

Por fim, Matheus aproveitou a oportunidade para conscientizar o público sobre os efeitos da possível aprovação da PEC 03/22, que visa a privatização de áreas costeiras. Segundo ele, o projeto pretende expulsar povos tradicionais e ribeirinhos de suas regiões, eliminando também as formas de subsistência e geração de renda dessas populações.

A última fala do painel foi feita por José Luiz Souza. Deco, como prefere ser chamado, é da comunidade quilombola de Deus Ajude. Com formação em Etnodesenvolvimento, é mestrando em Antropologia na Universidade Federal do Pará, além de professor do município e do estado, e diretor de uma escola. Ele integra o Abayomi, um grupo de juventude quilombola.

Sobre o nome, explica: “‘Abayomi’ significa ‘encontro precioso’ ou ‘o melhor que posso dar de mim'”. Ele resgata a origem histórica do nome e conta que as mulheres, em navios negreiros, faziam bonequinhas com nós, como sinal de que um dia poderiam se encontrar e se reconhecer, e entregavam-nas utilizando a palavra “Abayomi”. 

A atuação do Abayomi surge a partir de uma discussão de movimentos sociais mais antigos. Com lideranças quilombolas envelhecendo, jovens da região tomaram para si a missão de continuar um trabalho que se iniciou em 1999, da resistência do município de Salvaterra.

A luta pelo reconhecimento de identidades quilombolas, o trabalho de pesquisas em comunidades e a articulação em rede dos coletivos presentes na região também foram pontos importantes mencionados pelo professor. Segundo ele, em 2001, houve um primeiro encontro para discutir as comunidades quilombolas, marcado pela presença de muitas lideranças femininas. A partir dessa articulação, inicia-se o processo de titulação dos quilombos. “Demarcar terras é difícil por causa dos interesses locais, e de órgãos que têm quadros ligados a fazendeiros da região que ocupam terras”, desabafa.

 

 

Ele explica que a Abayomi recebe apoio financeiro da Malungu, que redistribui seu financiamento entre diferentes coletivos quilombolas. Malungu significa “companheiros”, e o fortalecimento de identidade e cultural, com mestres de carimbó e educação dentro das comunidades, faz parte do dia a dia dos coletivos apoiados. 

A respeito de dados e pandemia, Deco é enfático ao afirmar que a Juventude Abayomi salvou o município de Salvaterra, já que os recursos recebidos pelo coletivo foram direcionados à compra de medicamentos e alimentos. As comunidades quilombolas foram fechadas com apoio dos órgãos municipais de segurança e de saúde públicas, e adotaram medidas sanitárias e protocolos para garantir sobrevivência e apoio às pessoas em comunidade. 

Nesse contexto, a Abayomi fazia rondas de segurança e transitava com carros de som com instruções de combate à Covid. A organização também foi responsável por pensar em estratégias para as pessoas ficarem nas suas comunidades, e o escoamento de produtos agrícolas também foi foco de sua preocupação. Barreiras sanitárias foram erguidas e até mesmo caminhões foram lavados para não contaminar a população. 

A violência psicológica e física também fizeram parte do cotidiano dessas comunidades, já que ameaças foram feitas por conta de seu isolamento. Pessoas que serviram como resistência e ponto de reunião e alimentação durante a pandemia foram lembradas e homenageadas em sua fala. 

José Luiz também trouxe um panorama breve sobre os Jogos de Identidade Quilombola, torneio realizado anualmente durante 4 dias, com sede itinerante. Além de um festival, a atividade também é uma oportunidade para expor e compartilhar problemas que precisam ser enfrentados coletivamente, como a chegada da monocultura do arroz. 

Com a chegada dos arrozais, muitos problemas locais têm se agravado, como a grilagem de terras, a devastação ambiental e a contaminação por agrotóxicos. Salvaterra era a terra do abacaxi, mas em 2013, a fábrica da fruta foi transformada em uma fábrica de arroz. A população também sofre ameaças por conta do enfrentamento do avanço do plantio do arroz sobre áreas quilombolas. 

Além do arroz, fábricas de mandioca, áreas de plantação de batatas, melancias e outras monoculturas também avançam sobre esses territórios, com políticas públicas sendo implementadas de cima para baixo, e a leniência do governo em relação à grilagem. 

“Como se fala em COP se temos comunidades destruídas, lideranças ameaçadas e assassinadas? Nós queremos o direito de ser livres, porque tivemos a Lei Áurea, mas não somos livres. Somos presos pelo sistema, que não aceita pessoas pretas. Essa Amazônia que está sendo destruída, não está sendo destruída pelas pessoas que estão aqui”, finaliza.

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Bianca Barbosa

É quilombola, do município de Salvaterra. Bióloga, especialista em gestão de sistemas agroextrativistas para territórios de uso comum na Amazônia e membra do grupo de juventude negra quilombola Abayomi. Também compõe gestão de projetos no Observatório do Marajó.

Cristivan Alves

Cristivan Alves

Quilombola e fundador da Associação Remanescentes de Quilombos do Igarapé Arirá- ARQIA. Comunicador Popular da Assessoria de Comunicação da Malungu e Jornalista da SDDH.

José Luís Souza

José Luís Souza

Quilombola da comunidade Deus Ajude (Salvaterra, Pará). Formado em Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento pela Universidade Federal do Pará (UFPA), especialista em Gestão em Sistemas Agroextrativistas para Territórios de Uso Comum na Amazônia pelo Instituto Nacional de Agriculturas Familiares da Amazônia- INEAF/UFPA, e mestrando em Antropologia e Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. É ativista e liderança quilombola da região do Marajó e membro-fundador do grupo de juventude quilombola Abayomi, além de professor da Educação Básica no Estado no Pará.

Matheus Adams

Matheus Adams

Marajoara, cientista em Alimentos em formação. Atualmente, é coordenador do Coletivo Cuíra e conselheiro deliberativo da Resex-Mar-Soure.

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