A matéria ‘A grande mentira verde’: como a destruição da Amazônia vai além do desmatamento, publicada em fevereiro pela BBC News Brasil, foi recentemente atualizada com informações sobre a COVID-19 na região e traduzida para o inglês.
Dividida em duas partes, a segunda faz um detalhamento local: “Amazônia: O que ameaça a floresta em cada um de seus 9 países?”.
O especial traça o panorama detalhado do avanço da exploração na região amazônica e destruição da floresta, orientado com dados coletados pelos órgãos de monitoramento. A Escola de Dados fez uma breve entrevista com Camilla Costa, jornalista da BBC e autora da matéria. Confira abaixo o diálogo, e saiba mais sobre os bastidores desta notícia.
# Quais as principais fontes de dados disponíveis sobre desmatamento e degradação ambiental na Amazônia? Quais foram as dificuldades para acessar e interpretar esses dados – e como você as contornou?
Camilla Costa (BBC):
Nossas principais fontes foram o Inpe, que faz um excelente monitoramento do Brasil e, em alguns casos específicos como queimadas, até de países vizinhos, o Global Forest Watch, projeto do World Resources Institute, uma parceria de diversas instituições científicas, e o RAISG, também uma parceria de instituições científicas de todos os países amazônicos.
O acesso a esses dados felizmente não foi difícil. Estas instituições estão preparadas para disponibilizar seus dados e o fazem com facilidade e em formato adequado. A interpretação é mais complexa, porque são sistemas diferentes, que medem coisas diferentes (mesmo que às vezes tenham o mesmo nome, como desmatamento, usam métodos diferentes, muitas vezes), em períodos de tempo diferentes. Então era preciso evitar comparações entre um sistema e outro e deixar claro de que medida exatamente estávamos falando quando usávamos cada um desses dados, e por que tais medidas eram importantes.
Para conseguir fazer isso, foi fundamental conversarmos com alguns especialistas, não só das instituições que nos ofereciam os dados, mas também os independentes destas instituições. Eles nos ajudaram a entender melhor a diferença entre cada uma dessas medições e o que poderíamos tirar delas.
# Por que a cobertura sobre temas ambientais na Amazônia não deve se restringir aos dados de desmatamento? E como a imprensa poderia melhorar a cobertura de temas ambientais a partir de dados, no caso da Amazônia?
Camilla Costa (BBC):
Algo que descobrimos no decorrer do nosso processo de apuração é que os dados de desmatamento, apesar de serem muito importantes, mostram uma parte até relativamente pequena do problema, se considerarmos a crise sistêmica causada pela degradação.
Mas mesmo que não considerássemos a degradação, o próprio desmatamento precisa ser colocado, na minha opinião, em melhor contexto, porque ele pode, sim, parecer pequeno quando posto ao lado da imensidão do território amazônico. E isso não sou eu quem digo. Já é um discurso na boca de autoridades do país. Um discurso que é reproduzido por seus apoiadores em redes sociais para minimizar a ideia de que é preciso combater o desmatamento, já que ele “não é tão grande assim”.
Nós, jornalistas, nos apegamos bastante a uma série de clichês de comparação como os “campos de futebol” e as “piscinas olímpicas” para falar de área e volume, por exemplo. Mas não acho que paramos para nos questionar quando é que eles realmente servem. Se estamos falando de crise climática, da importância da floresta para o clima, para a economia, não dá para considerar um hectare de Amazônia apenas como “um campo de futebol”. Não é só território marcado no chão. Essa é uma lógica que aparentemente facilita nossa vida na hora de escrever, mas que acaba reproduzindo um pensamento que diminui o valor que supostamente estamos tentando demonstrar.
Repensar essas comparações é algo que tentamos fazer nessa reportagem e é uma das maneiras como acho que a imprensa poderia melhorar a cobertura de temas ambientais a partir de dados.
# Como vê a produção local de dados ambientais sobre a Amazônia? Ou seja, como compara os dados produzidos por órgãos oficiais e organizações dos países desta região com aqueles levantados por organizações internacionais?
Camilla Costa (BBC):
O Brasil tem um excelente sistema de monitoramento da Amazônia, estabelecido há anos e que produz dados bastante confiáveis. Isso fica ainda mais claro na comparação com outros países amazônicos.
Mesmo iniciativas de universidades e ONGs nacionais e internacionais se comunicam com estes sistemas e partem desses dados. Me parece que essa pluralidade de órgãos de monitoramento também colabora com uma certa cobrança de que os órgãos oficiais se mantenham transparentes e rigorosos.
Mas, sem dúvida, as iniciativas internacionais, como o Raisg, têm sido fundamentais para uma visão unificada e um mapeamento do território amazônico contando todos os seus países, algo bastante difícil de fazer.
# Como coletar dados sobre as atividades econômicas ilegais na Amazônia? O produto dessas atividades ilegais contribuem para a composição do PIB nos países constituindo um agravante das dificuldades de combate à degradação? Consegue apontar estratégias que têm sido bem-sucedidas em conciliar conservação com o desenvolvimento de atividades econômicas?
Camilla Costa (BBC):
Há alguns projetos e institutos tentando coletar esses dados em seus países, mas essa foi uma das principais dificuldades que tivemos. No Brasil, eu destacaria o projeto InfoAmazônia, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o próprio Raisg. Em outros países amazônicos, encontrei relatórios de grupos de pesquisa universitários ou de ONGs, nem todos, infelizmente, atualizados após 2015.
Mas sabemos que é possível, por exemplo, estimar quanto da exportação de ouro do Peru provém do garimpo ilegal, porque isso já foi feito. Imagens de satélite também permitiram determinar o aumento do território usado para o garimpo no Suriname em um momento específico nos últimos anos. As atividades econômicas precisam de escoamento, há maneiras de trilhar o caminho desse dinheiro.
Mas é algo certamente complicado de fazer, e são dados difíceis de conseguir. E muito mais difíceis de unificar. Outra coisa complicada é que nós, jornalistas, não podemos cravar uma relação de causalidade entre determinada atividade ilegal e determinado percentual do PIB em uma reportagem. Se esta relação for estabelecida por especialistas, com critérios científicos que sejam considerados corretos, podemos, reportar isso.
Mas enquanto isso não acontece, o que podemos fazer, me parece, é dar aos leitores as ferramentas para que entendam que determinadas atividades têm um peso de X% no PIB de um país e também têm uma relação comprovada de X% com o desmatamento. E explicar os mecanismos dessa relação com o desmatamento. Para além dos dados, é importante que possamos fornecer uma explicação sistêmica. Só os dados não vão dar um panorama completo do que acontece. Além disso, números jogados podem apenas demonizar uma atividade, sem jogar luz sobre o sistema que de fato propicia o desmatamento.
Em nossa reportagem, um dos insights mais importantes, que outras ótimas reportagens sobre o tema também já demonstraram, é que a tão falada relação da pecuária com o desmatamento na Amazônia na verdade tem outro cerne: a especulação de terras.
Sobre as estratégias que conciliam conservação com desenvolvimento, eu diria que o Instituto Socioambiental não só monitora como participa ativamente do desenvolvimento de muitas delas, que têm ocorrido com sucesso, e são histórias incríveis.
# Ao longo do processo, houve alguma percepção, descoberta ou insight interessante, mas não mencionada na matéria final? Algo mais que valha a pena compartilhar com as pessoas interessadas neste tema?
Camilla Costa (BBC):
Tentamos colocar todos os insights mais interessantes na matéria final, na medida do possível. Mas acho que há algumas coisas que só podem ser realmente percebidas por quem tirar um tempo para realmente ler as reportagens, especialmente a segunda parte, que fala sobre o que acontece em cada país.
Para mim, foi muito interessante perceber que os países amazônicos enfrentam mecanismos muito semelhantes de desmatamento: a especulação de terras é o motor que liga a produção agropecuária ao desmate. O garimpo é praticamente uma estrutura de comércio internacional na região — o Brasil parece ser, pelos relatos que ouvi, o maior “exportador de garimpeiros” para todos os seus vizinhos há décadas.
Por que ainda insistimos na ideia de que a “Amazônia é brasileira?”, por que resistimos tanto à cooperação com os países amazônicos e às estratégias conjuntas de preservação, que sejam políticas de Estado? Claro, isso terá muitas respostas, e certamente complexas, mas me pergunto bastante se, como sociedade, não deveríamos estar pressionando mais por uma política regional contundente para a Amazônia.
Que inclua, para começar, a exportação desse monitoramento de qualidade que o Brasil faz aos outros países amazônicos. E a importação das boas estratégias que eles têm também. A Colômbia têm tido experiências interessantes de cooperação com comunidades indígenas no combate ao desmatamento, que estão dando resultados em números. A Guiana também tem uma política de controle do extrativismo da floresta que consegue manter níveis baixos de desmatamento, e sobre a qual acho que seria interessante saber mais. Apenas para citar dois exemplos.
É claro, para os grandes especialistas no tema o que estou falando pode ser notícia velha. Mas além de jornalista, sou leitora. E nesse processo, também fiquei sabendo de coisas sobre as quais nunca li. Acho que vale falarmos mais sobre elas.
Uau, muito massa essa matéria. Estive em uma aldeia indígena em 2013, com um grupo de ativistas para conhecer de perto essa realidade. A aldeia takuara, no mato grosso do sul, vivia tempos conflituosos, como ainda vive e pude ouvir histórias verídicas de indigenas crianças que suicidavam, pistoleiros financiados por fazendeiros, vimos uma usina não notificar as aldeias vizinhas quando fossem explodir suas dinamites nas pedreiras, sem nenhum sinal sonoro, como a lei pede…também presenciamos um avião de pequeno porte lançar agrotoxico sob as mulheres e crianças indigenas de um aldeia ali perto..enfim, foi um mês na companhia dessas lideranças indígenas que nos deram uma real visão dessa realidade, mesmo que por pouco tempo, pudemos analisar justamente o que a Camila falou, lá uma das primeiras conversas que tivemos com a liderança, foi a seguinte:
-“Um pé de soja, vale mais do que um indígena, uma cabeça de gado, vale mais do que uma aldeia indígena. ”
De início achei muito sensacionalista, mas com o passar do tempo, fui percebendo o cuidado que eles tem com a natureza, e com a terra, e assim veio a primeira ameaça que partiu de um dos pistoleiros, vi que era muito real o que a liderança passava pra nós.
É muito importante toda essa questão do desmatamento e da tomada de terras pelos fazendeiros. Nós estamos falando de assassinatos, assim como diz os relatórios do CIMI, é uma luta sem fim. Parabens pela entrevista e pela coragem.