Conheça os bastidores por trás do projeto vencedor 2024 do Prêmio de Jornalismo de Dados Cláudio Weber Abramo na categoria Investigação
Texto por Bram Ebus, Jeanneth Valdivieso e Juan Torres, publicado originalmente
no Pulitzer Center e ICFJ, traduzido pela Escola de Dados.
Uma equipe de 37 jornalistas e profissionais de mídia de 11 países trabalhou junta por 16 meses para produzir “Amazon Underworld“, uma investigação baseada em dados que obteve insights sobre grupos armados e economias ilícitas nas regiões fronteiriças de seis países amazônicos.
Isso inclui um banco de dados que foi convertido em um mapa interativo sobre grupos armados nas regiões, e uma série de relatórios detalhados sobre vários aspectos das organizações criminosas da região, muitas das quais receberam pouca ou nenhuma cobertura midiática.
Esta investigação foi publicada em uma aliança de InfoAmazonia no Brasil, La Liga Contra el Silencio, na Colômbia e Armando.info, na Venezuela. Desde sua publicação, o projeto tem chamado a atenção mundial. Vários grandes veículos de comunicação, incluindo BBC, CNN, Nature, El País, Al Jazeera e Folha de S.Paulo, entrevistaram a equipe ou reportaram sobre o projeto. A equipe foi convidada a apresentar seus resultados em mais de 50 eventos e reuniões, incluindo ONGs ambientais internacionais, agências da ONU e autoridades governamentais no Brasil, Peru, Colômbia e EUA. O projeto ganhou o Prêmio Cláudio Weber Abramo em Jornalismo de Dados, a competição de jornalismo de dados mais importante do Brasil.
O banco de dados e o mapa, construídos com dados coletados por meio de métodos quantitativos e qualitativos que abrangem 348 municípios em seis países da Amazônia, estão sendo utilizados por ONGs e outros veículos de mídia para planejar seu trabalho de campo de maneira segura.
Aqui estão algumas de nossas estratégias e metodologias para concluir este projeto colaborativo ambicioso e de alto risco, bem como lições aprendidas.
1. Como colaboramos além das fronteiras?
Quatro elementos foram essenciais para coordenar a colaboração transfronteiriça do Amazon Underworld: escuta, construção de confiança, planejamento e flexibilidade. Nos seis países abrangidos pela investigação, questões como barreiras linguísticas e diferenças de moeda afetaram a gestão do projeto. No entanto, mais importante ainda, existem condições específicas que influenciam fortemente nosso trabalho de campo, e compreendê-las é crucial para o sucesso da pesquisa e a segurança dos jornalistas.
Atenção deve ser dedicada a essas particularidades locais, e para isso, é necessário ouvir atentamente os jornalistas envolvidos no projeto, confiar no conhecimento dos colegas que trabalham no território e contar com fontes locais. Não há como ir a campo sem compreender as características geográficas, sociais e políticas do território onde a pesquisa será realizada – e garantir que esse conhecimento seja compartilhado por toda a equipe: repórteres, editores e coordenadores do projeto.
As informações necessárias antes de ir a campo variavam desde saber se uma seca afetou um rio específico crucial para a navegação até alcançar um determinado destino, até entender quais grupos armados estão presentes na região, sua força militar, seu nível de penetração nas comunidades, como operam, se agentes estatais podem estar envolvidos em crimes e quais fontes e atores locais podem ser confiáveis em caso de emergência. Tudo isso varia não apenas de país para país, mas também diverge entre regiões dentro do mesmo país. Portanto, a grande quantidade de informações era difícil de dominar sem recorrer a fontes. Foi muito difícil coordenar um projeto como o Amazon Underworld sem uma base de confiança dentro da equipe. Munidos dessa compreensão, é importante construir colaborativamente um plano muito robusto. No entanto, no final, ser flexível foi crucial porque a dinâmica na Amazônia é muito imprevisível, e cada viagem a campo é sem dúvida única.
2. Como reunimos informações em uma região tão grande quanto a Amazônia?
Um dos desafios mais significativos de trabalhar na Amazônia é acessar fontes em áreas remotas e obter informações confiáveis. Inicialmente, precisávamos de informações abrangentes para construir nossa estratégia de reportagem e realizar avaliações de segurança para nossos repórteres. Obter informações básicas, cruciais para planejar viagens a campo, como a localização de centros de saúde (muitas vezes sem presença online) ou pistas de pouso para rotas de saída (às vezes clandestinas), provou ser desafiador em todos os países.
Para reunir dados para nossa investigação, o elemento de reportagem, enfrentamos a tarefa de coletar uma quantidade vasta de informações em uma região maior que a União Europeia, com estradas limitadas, centros urbanos e conectividade digital limitada. Reconhecendo esse desafio desde o início, montamos uma equipe especializada e elaboramos uma estratégia para reunir informações. Enviamos centenas de solicitações de acesso a dados públicos e passamos meses criando um banco de dados sobre a presença de grupos armados na Amazônia usando Excel e Notion. Este banco de dados, compilado transnacionalmente com uma metodologia uniforme, baseou-se principalmente em fontes primárias, incluindo entrevistas locais no campo ou por telefone e documentos oficiais, especialmente dos poderes executivo e judiciário de cada país.
As fontes primárias para o banco de dados são indivíduos conhecidos e considerados confiáveis, que vivem e/ou trabalham no território e entram em contato direto com economias ilegais e grupos armados. Documentos oficiais, incluindo documentos de inteligência e relatórios de instituições estatais, foram considerados. Dado o viés potencial em documentos politicamente motivados ou mal pesquisados por instituições estatais, essas fontes foram minuciosamente examinadas e aprovadas antes de serem adicionadas ao banco de dados.
3. Como investigamos dragas de mineração ilegal
O objetivo de um de nossos relatórios era identificar o número de dragas de mineração, que são verdadeiros monstros metálicos que escavam sedimentos fluviais ricos em ouro e os processam com o tóxico mercúrio metálico. Neste caso específico, optamos por estudar o rio Puruê no Brasil, que se origina em um parque nacional na vizinha Colômbia. Essa atividade de mineração ilegal danifica o ecossistema da Amazônia ao alterar o curso do rio por meio de dragagem pesada, desmatamento ao longo das margens do rio e contaminação severa devido ao despejo de grandes quantidades de mercúrio no ecossistema. O mercúrio acaba nos peixes, entrando na cadeia alimentar e na dieta das comunidades indígenas ribeirinhas.
As dragas de mineração podem custar até US$ 500.000 e podem dragar até 3 quilogramas de ouro por mês, gerando riqueza substancial no coração da selva. Mas o dano ambiental não é a única razão pela qual investigamos as dragas de mineração, pois também sabíamos que os mineiros pagam uma comissão, uma taxa de extorsão, a uma organização guerrilheira colombiana que atravessa da Colômbia para o Brasil para coletar pagamentos em ouro. Além disso, funcionários corruptos do estado, incluindo a Polícia Militar, recebem uma parte, especificamente para proteger a mineração da guerrilha mencionada e para alertar sobre repressões iminentes.
Para nossa reportagem, era crucial contar o número de dragas, o que nos permitiria calcular o dano ambiental, estimar a produção de ouro e determinar as receitas ilícitas da guerrilha colombiana e de oficiais corruptos da polícia brasileira. Inicialmente, tentamos desenvolver um algoritmo com a ajuda do Pulitzer Center e do Earth Genome. No entanto, encontramos dois desafios: 1.) cobertura de nuvens persistente em grande parte da Amazônia — imagens de satélite não conseguiam capturar todo o rio de uma vez devido a sua extensão, e as porções capturadas em uma única varredura sempre tinham áreas cobertas por nuvens; 2.) o risco de contagem dupla. Ao contrário da mineração terrestre, onde as escavações podem ser detectadas visualmente, as dragas são móveis, e a incapacidade de capturar todo o rio de uma vez apresenta o risco de contagem dupla.
No final, estabelecemos uma parceria com uma ONG que trabalha na proteção da Amazônia e agendamos dois voos: um sobre o trecho colombiano do rio e outro cobrindo a extensa porção no Brasil. Surpreendentemente, contamos um total de 168 dragas. Isso levantou questões, considerando que apenas um mês antes, uma repressão direcionada — dias de operações policiais intensivas destinadas a essas dragas — destruiu um número significativo delas.
No entanto, utilizando imagens de satélite da Planet, notamos uma mudança na cor do rio, que havia sido um marrom claro, semelhante a café com leite, por anos devido à intensa dragagem. Aproximadamente cinco dias antes da repressão, o rio voltou à sua tonalidade original, escurecida por material orgânico, sinalizando a interrupção da atividade das dragas. Após consultar fontes locais, incluindo os próprios mineradores, ficou evidente que eles haviam conseguido ocultar a maioria das dragas em antecipação à iminente repressão. No entanto, quando realizamos o levantamento aéreo de acompanhamento várias semanas depois, o número de dragas aumentou drasticamente, pois os mineradores haviam retornado.
4. Abordagem de segurança
Quando o projeto foi iniciado, uma das primeiras reuniões da equipe foi um workshop de segurança liderado por Steve Hide, um especialista em trabalho de campo, com ampla experiência no setor humanitário. O treinamento visava preparar as equipes sobre questões de segurança, envolvendo aprender a analisar contextos e identificar riscos, estabelecer protocolos de segurança física e digital, e saber como responder em situações de emergência. Naquela época, estávamos profundamente cientes do assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do especialista indígena brasileiro Bruno Pereira durante uma viagem ao Vale do Javari na Amazônia brasileira. Isso destacou a importância de estabelecer protocolos de segurança para as viagens do projeto Amazon Underworld.
Todas as viagens de reportagem para o Brasil, Colômbia, Peru e Venezuela foram monitoradas, e protocolos de segurança foram elaborados antes de cada missão. Esses protocolos incluíam informações contextuais sobre as condições de segurança no campo, presença de grupos armados ilegais, mapeamento de hospitais e centros de saúde próximos, confirmação de comunicações (sinal celular, acesso a dados etc.), rotas de comunicação (estradas, rios, pistas de pouso), contatos-chave para emergências e detalhes de locais e indivíduos para entrevistar em cada localidade. Compreendemos que o plano no papel poderia mudar, mas ele servia como nossa base segura para o trabalho. Pré-estabelecemos a frequência de chamadas ou mensagens para informar que tudo estava bem ou para perguntar sobre atualizações.
A Amazônia, em todos os países envolvidos, apresenta características comuns e especificidades em comparação com outras regiões que precisavam ser consideradas. Muitos destinos de viagem escolhidos só podem ser alcançados por via aérea ou aquática, e em muitas áreas, não há comunicação celular devido à falta de cobertura ou conectividade ruim. Além disso, os serviços de saúde em cidades e vilarejos amazônicos são limitados e básicos, exigindo possíveis transferências para grandes cidades em emergências. Além disso, a presença geral do estado é mínima, e atividades ilegais e grupos armados requerem uma abordagem séria para a segurança tanto das equipes jornalísticas quanto dos contatos em cada localização.
Entre as ferramentas utilizadas para monitoramento e comunicação estava um dispositivo GPS Garmin em cada país. Isso ajudou a monitorar rotas, localizar equipes em lugares estabelecidos e fornecer relatórios breves sobre seu progresso no campo. Também facilitou o envio e recebimento de mensagens de alerta.
Ocorreu um incidente com uma equipe que investigava a dragagem ilegal de ouro no Rio Puruê, no Brasil, perto da fronteira colombiana. Monitoramos a jornada como de costume; os membros da equipe atravessaram para o lado brasileiro e estavam navegando pelo rio quando foram ameaçadoramente confrontados por um grupo da Polícia Militar de Japurá, que apreendeu dispositivos que armazenavam fotos e vídeos.
Na região, há a presença de grupos armados ilegais extorquindo mineiros, piratas roubando viajantes e policiais gerando desconfiança na população devido a alegações de corrupção. Cobrimos o que estava acontecendo nesta área na reportagem “Dragas: Ouro Estimula Crime e Corrupção na Fronteira Brasil-Colômbia” e posteriormente denunciamos as ações da polícia. (Mais detalhes podem ser encontrados neste artigo do Committee to Protect Journalists).
Ao serem alertados sobre a situação pela equipe de campo, os monitoradores na Colômbia e no Brasil ativaram imediatamente o protocolo acordado e contataram os contatos confiáveis de interesse que nos auxiliaram, em poucas horas, a notificar as autoridades. Ao tornar a informação pública com esses contatos, acreditávamos estar estabelecendo um escudo de proteção para nossos colegas, e no mesmo dia, eles foram abordados novamente pela Polícia Militar, que devolveu os dispositivos apreendidos. O monitoramento continuou, e os contatos tornaram-se mais frequentes para acompanhar de perto a situação, que terminou sem incidentes adicionais até a equipe retornar à Colômbia. A comunicação contínua, o estabelecimento prévio de protocolos, o contato com partes interessadas-chave e a ação rápida nos permitiram reagir ao alerta e concluir a viagem de campo.