LAI em tempos de LGPD
SOBRE O PAINEL
A Lei de Acesso à Informação (LAI) garante aos cidadãos o direito de acesso à informações públicas. Já a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) diz respeito à privacidade e à proteção dos dados pessoais dos indivíduos. À primeira vista, portanto, não parece haver espaço para uma lei interferir na outra. No entanto, não é o que tem acontecido no Brasil, onde o governo tem se utilizado da LGPD para impedir o acesso a informações públicas determinado pela LAI. Este foi o problema abordado pelos integrantes do painel “LAI em tempos de LGPD”, realizado no segundo dia (9/11) da VI Conferência Brasileira de Jornalismo de Dados e Métodos Digitais (Coda.Br 2021).
A atividade contou com a presença de Maria Vitória Ramos (Fiquem Sabendo), Jamila Venturini (Derechos Digitales), Paulo Rená (Instituto Beta) e mediação de Fernanda Campagnucci (Open Knowledge Brasil).
LAI e LGPD garantem direitos fundamentais e não só podem, como devem se complementar
Jamila Venturini é diretora-executiva da Derechos Digitales, organização latino-americana que luta pela defesa e proteção dos direitos humanos no ambiente digital. Ela apresentou um panorama de como os direitos de acesso à informação, privacidade e proteção de dados têm sido tratados na região.
A jornalista relatou que vários países da América Latina passam por desafios para regulamentar o acesso à informação. Alguns, como a Costa Rica, não têm sequer uma lei adequada sobre o tema; outros não têm um órgão governamental com capacidade ou independência suficiente para supervisionar e certificar que o direito seja cumprido. E, durante a pandemia, muitos países tentaram flexibilizar as obrigações que já existiam, como foi o caso do Brasil, Chile e Argentina. No Equador, por outro lado, o direito foi reforçado durante a crise sanitária. O o país tornou prioritários os pedidos de acesso à informação sobre temas relacionados à pandemia.
Simultaneamente, alguns países também conduziram acordos e iniciativas que colocavam em risco a privacidade dos cidadãos, no contexto da adoção de tecnologias desenvolvidas por empresas privadas para alerta de exposição à COVID-19, que ficaram conhecidas como aplicativos de contact tracing.
Venturini reforçou que a transparência não é inimiga da privacidade, pelo contrário: “só quando a gente sabe que determinados dados são coletados e utilizados que a gente pode ter algum controle sobre esses usos”, comentou.
Segundo ela, a América Latina é marcada por uma cultura de sigilo, onde argumentos como o de segurança nacional ainda são utilizados como justificativas para ocultar da sociedade o uso de tecnologias com grande potencial de abuso. A tecnologia de reconhecimento facial, por exemplo, é implantada em espaços públicos sem que a sociedade saiba como, por qual razão ou por quem seus dados sensíveis, biométricos, suas características físicas estão sendo coletados. Assim, sequer possuem a chance de se opor a este processo.
Portanto, para Venturini, é preciso desmistificar a dicotomia entre LAI e LGPD e se aprofundar nas ferramentas que existem para equilibrar os direitos que tais leis regulamentam. “Não existe democracia sem acesso à informação pública e não existe igualdade sem que a sociedade possa se proteger dos usos abusivos de seus dados e da intrusão indevida do Estado”, concluiu Venturini.
A mudança cultural também é necessária à LGPD
Professor de Direito, Inovação e Tecnologia na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Centro Universitário de Brasília (CEUB), Paulo Rená elucidou importantes aspectos da LGPD. Ele lembrou que antes da lei, o Brasil já tinha outras leis que tratavam sobre proteção de dados, como o Código de Defesa do Consumidor e o Marco Civil da Internet, mas a LGPD foi a primeira que abordou o tema de forma ampla.
Rená reforçou que a LGPD não é uma lei de proibição de uso de dados pessoais e muito menos de proibição de acesso a dados públicos. “A LGPD é uma lei voltada para a proteção e, em um contexto democrático, para o exercício da cidadania, o respeito da dignidade humana, a valorização do trabalho e da livre iniciativa, para a nossa própria soberania e até mesmo para a pluralidade política”.
Mas o Brasil chegou atrasado neste debate. O pesquisador do Instituto Beta e do AquaItune LAB contou que, antes mesmo do país dar início a essa conversa, países como Alemanha, Estados Unidos, Austrália e Argentina já tinham implementado suas respectivas legislações sobre a proteção de dados pessoais. Mesmo após a LGPD ter entrado em vigor, em 2018, o país seguiu em atraso pois só estabeleceu a autoridade supervisora da lei – a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – em 2020, ainda que todos os dispositivos necessários para sua implementação estivessem disponíveis desde 2018.
Como afirmou Rená, a LGPD precisa de uma mudança cultural e dos mecanismos que vão permitir que a proteção de dados aconteça nas empresas, no poder público, nas instâncias de controle de dados de empresas nacionais e multinacionais. “Essa cultura depende da ANPD funcionar e afirmar como isso deve acontecer na prática”, disse.
Uso indevido da LGPD representa retrocesso para a LAI
Maria Vitória Ramos é cofundadora e diretora da Fiquem Sabendo (FS), agência de dados especializada na LAI. A missão da FS é abrir dados, informações e documentos públicos que estão ocultos para a sociedade, mas agora a agência também atua para impedir retrocessos na transparência pública brasileira.
Isto porque, estando na linha de frente dos pedidos de acesso à informação feitos aos órgãos públicos, a equipe da Fiquem Sabendo tem notado diariamente o uso indevido da LGPD para negar o acesso a dados e informações públicas. Em levantamento conduzido pelo jornalista Eduardo Goulart para a FS, o grupo mostrou que ao menos 79 pedidos de acesso que chegaram até a instância da Controladoria-Geral da União (CGU) utilizaram a LGPD como justificativa para fechar o acesso a dados públicos.
Sob o uso indevido da LGPD, o governo já barrou o acesso a relatórios de trabalho escravo no país e informações sobre licenciamento ambiental. Ramos contou que a Fiquem Sabendo já conseguiu reverter algumas dessas negativas, mas o cenário geral é grave. Além dos dados que não estão sendo mais publicados, bases de dados abertos que já estavam disponíveis nos portais públicos estão sendo removidas sob a justificativa de adequação à LGPD. “O medo é por todas as bases de dados que já estavam abertas e estão sendo retiradas pelos órgãos e a gente não sabe. É muito difícil fazer esse mapeamento, ainda mais a nível estadual e municipal”, explicou.
Por isso, a Fiquem Sabendo criou uma frente com dez ações simultâneas para mapear e impedir o retrocesso do direito de acesso a informações públicas no país. Uma das ações publicadas foi o manifesto “LGPD não pode ser usada para impedir cidadãos de saber como e por que a administração pública age”, assinado pela FS, o Instituto Beta, a Open Knowledge Brasil e mais 25 organizações e meios jornalísticos.
Além disso, a agência está trabalhando em parceria com o Insper em um levantamento completo de todos os pedidos de acesso à informação que foram negados com base na LGPD.
Por fim, Ramos também convocou a todos que se preocupam com a transparência pública no Brasil a compartilharem reportagens, levantamentos e informações sobre o tema, a se mobilizarem nas redes sociais e lutar pela garantia do direito de acesso à informação no país.
DURAÇÃO
1:30h
Referências da atividade
Maria Vitória Ramos
É cofundadora e diretora da Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada no acesso à informação. Finalista do SIGMA Awards e vencedora do Prêmio Cláudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados e do Prêmio Jornalismo-Mosca, do Livre.jor. Faz parte das Chicas Poderosas, instituição global que promove a liderança feminina na mídia. É alumni do International Visitor Leadership Program virtual “Transparency and Accountability in Government”, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, e do programa “Product Immersion for Small Newsrooms”, da Newmark Graduate School of Journalism em parceria com News Catalyst e Google News Initiative. Formada pela Faculdade Cásper Líbero, foi repórter da Ponte Jornalismo e é autora de “Indigentes: o Estado que enterra sem avisar”, livro-reportagem selecionado para a 4ª Feira de Direitos Humanos da Conectas e publicado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Jamila Venturini
É diretora-executiva da Derechos Digitales, organização latino-americana que luta pela defesa e proteção dos direitos humanos no ambiente digital. Jornalista pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciências Sociais com foco em Educação na Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso Argentina), Jamila é também membro da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits) e doutoranda no Programa de Ciências Sociais da Unicamp.
Paulo Rená
Professor de Direito, Inovação e Tecnologia na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Centro Universitário de Brasília – CEUB. Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília. Pesquisador no Instituto Beta: Internet & Democracia e no Aqualtune LAB, ONGs integrantes da Coalizão Direitos na Rede. Consultor Sênior de Políticas Públicas da ISOC Brasil para os temas Criptografia e Responsabilidade de Intermediários. Integrante do Conselho Consultivo do InternetLAB. Servidor Público Federal no Tribunal Superior do Trabalho, lotado como assessor jurídico no gabinete da Presidência. Foi gestor do processo de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
Fernanda Campagnucci
É diretora-executiva da Open Knowledge Brasil. De 2013 a 2019, atuou como gestora pública na Prefeitura de São Paulo, tendo sido responsável pela política municipal de transparência, abertura de dados e integridade na Controladoria Geral do Município, além de ter liderado projetos de tecnologia, inovação e governo aberto na Secretaria Municipal de Educação. Graduada em Jornalismo e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo, é doutoranda em Administração Pública e Governo na Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV). Especialista em Transparência e Accountability pela Universidade do Chile (2014), foi fellow de Governo Aberto da Organização dos Estados Americanos (2015), Líder de Dados Abertos do Open Data Institute (2016) e fellow de governo da Unidade Operacional Governança Digital da Universidade das Nações Unidas, a UNU-EGOV (2018). É professora convidada do Insper nos cursos de Compliance e de Inovação no Setor Público.
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